quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Os piratas zumbis de David B.



The Littlest Pirate King é uma história em quadrinhos estranha e mórbida. Narra as peripécias de um grupo de piratas mortos-vivos que, como punição por seus crimes, foram condenados a vagar eternamente pelos mares em um velho navio. Após séculos de tediosas viagens náuticas, os bandidos lançam sua nau contra recifes e monstros marinhos, na esperança de encontrarem uma morte definitiva. Mas esta lhes é repetidamente negada por uma força maior, possivelmente divina. Como se todo esse tormento não bastasse, os piratas ainda se vêem obrigados a cuidar de uma criança náufraga.


A história é de autoria do escritor francês Pierre Mac Orlan e foi originalmente publicada nos anos 1920, na forma de um conto. A adaptação para os quadrinhos foi feita por outro francês, David B., pseudônimo de Pierre-François Beauchard, mais conhecido como autor da HQ autobiográfica Epiléptico (publicada no Brasil).

The Littlest Pirate King foi lançado nos EUA no final de 2010, pela editora Fantagraphics, com capa dura, páginas coloridas e preço meio salgado. Com menos de 50 páginas, proporciona uma leitura fácil e rápida. O enredo pode ser visto como uma reflexão sobre o destino - os piratas relutam em aceitar a existência a que foram condenados e confrontam a ordem divina. Mas a narrativa nunca é óbvia, e pode ter várias interpretações. A criança encontrada pelos piratas instigará o leitor a pensar na convivência entre seres aparentemente incompatíveis, e a última metade do livro pode ser uma metáfora do fim da infância, mas esta não é uma história com moral ou mensagem clara. Quem está acostumado com quadrinhos mais tradicionais poderá estranhar alguns trechos oníricos e o final abrupto e aberto.

Os belos desenhos de David B., feitos com traços grossos e tremidos, são elegantemente expressivos. Sombras espessas cobrem grande parte das páginas e realçam o tom mórbido da narrativa. As figuras desenhadas pelo artista são simples, mas o modo como são dispostas em cada quadro é cuidadoso e inventivo. David B. consegue colocar um grande número de personagens em um quadrinho de modo que todos pareçam necessários, no lugar certo e com uma expressão facial individual. Perspectivas incomuns são utilizadas para acentuar a dramaticidade de algumas cenas. As cores foram muito bem escolhidas e tornam as ilustrações mais divertidas.


Após criar HQs inspiradas por sonhos – publicadas na década de 1990, inéditas no Brasil – e histórias familiares, David B. se saiu muito bem com esta adaptação literária. Não é e nem pretende ser uma obra profunda e impactante como Epiléptico, mas mostra um artista maduro e talentoso, explorando a versatilidade de sua narrativa.

Título: The Littlest Pirate King
Autores: Pierre Mac Orlan e David B
Editora: Fantagraphics Books
Ano de Edição: 2010
48 páginas

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

As melhores HQs publicadas em 2010 nos EUA – Alternativas e clássicas



(Originalmente postada no site ambrosia.com.br)

Nos EUA, autores de quadrinhos são cada vez mais respeitados como artistas e intelectuais. Este status ficou claro em 2010 quando ilustrações de Chris Ware e Robert Crumb, rejeitadas por importantes publicações norte-americanas, tiveram imensa repercussão no meio cultural. Ware zombou dos milionários em uma divertidíssima arte para a capa da revista de negócios Fortune, na qual os ricos dançam no topo de um edifício enquanto o resto da população sofre os efeitos da crise financeira. A capa de Crumb para a revista The New Yorker parece ter sido recusada apenas por mostrar um casamento homossexual. Crumb não divulgou sua ilustração, mas a de Ware apareceu em vários sites. Nos dois casos ficou claro que o autor de quadrinhos não é necessariamente um criador de desenhos decorativos. Muitas vezes ele tem uma visão do mundo aguçada a ponto de abalar os responsáveis por publicações sólidas e de renome.
Abaixo estão algumas das melhores HQs publicadas em 2010 nos EUA, incluindo obras de Chris Ware e Robert Crumb (sem ordem de preferência):

The Best American Comics 2010 - Vários autores - Neil Gaiman (editor) 
Gaiman, autor da cultuada série Sandman, selecionou algumas das melhores HQs norte-americanas publicadas entre Setembro de 2008 e Agosto de 2009. Genesis de Crumb, Asterios Polyp de Mazzucchelli e Scott Pilgrim vs. The Universe estão entre as obras mais conhecidas desta coletânea e foram publicadas no Brasil. As surpresas ficam por conta de histórias menos conhecidas, como Acme Novelty Library 19, de Chris Ware, e a sombria The Lagoon, de Lili Carré.

Love and Rockets New Stories n.3 - Gilbert Hernandez e Jaime Hernandez
Gilbert exagerou na dose de sexo e violência, mas Jaime criou uma de suas melhores HQs. Abuso infantil, traumas e relações familiares dilacerantes são mostrados em um arco de três histórias, nas quais o tom narrativo salta do cômico ao trágico em poucos quadrinhos.

Strange Tales - Vários autores
Os heróis da Marvel revistos por autores de quadrinhos independentes. Os destaques são as hilárias aventuras criadas por Peter Bagge para Homem-Aranha e Hulk. Paul Pope (Batman: Ano100), Jason (The Living and the Dead), Dash Shaw (Umbigo sem Fundo) e Tony Millionaire (Maakies) também contribuem com ótimos trabalhos.

Wilson - Daniel Clowes
Novela gráfica composta por setenta HQs de uma página que podem ser lidas separadamente, mas que juntas formam um retrato do personagem que dá nome à obra. Wilson é um sujeito arrogante, egoísta, solitário, que aborda desconhecidos com perguntas sobre suas vidas pessoais apenas para zombar das respostas. Clowes explora novos estilos narrativos e se consolida como um dos melhores autores de quadrinhos contemporâneos.

The Extraordinary Adventures of Adele Blanc-Sec (Vol. 1) - Jacques Tardi
O francês Tardi é um artista versátil, narrador cuidadoso de fatos históricos e imaginários. As linhas claras e leves de seus desenhos remetem ao estilo de outro francês, o cultuado Moebius.  Suas principais obras estão sendo relançadas nos EUA pela editora Fantagraphics.

Reedição primorosa das aventuras do Príncipe Valente, com as magníficas cores originais. Mais que qualquer lançamento individual, o que se destacou no mercado norte-americano de quadrinhos em 2010 foi a consolidação de um padrão rigoroso de qualidade gráfica. Este padrão é bem visível nas reedições de HQs clássicas e tem como item fundamental a reprodução fiel da arte original dos quadrinhos, inclusive as cores, mesmo que com algumas manchas e imperfeições. O respeito com as antigas narrativas gráficas não partiu das editoras, mas sim de uma nova geração de leitores cada vez mais exigentes e conscientes do valor cultural das HQs.

Thirteen Going on Eighteen - John Stanley
Melvin Monster 2 - John Stanley
O cartunista Seth, responsável pelo design das reedições, infelizmente optou por não incluir as capas originais. Mas estas publicações luxuosas são irresistíveis para quem conhece a importância do trabalho de John Stanley, autor mais conhecido por levar a personagem Luluzinha aos quadrinhos.

Um personagem extremamente complexo, exposto de modo impiedoso e contundente. A arte de Ware continua clara e geométrica, mas a técnica narrativa está mais ousada, explorando os limites da fragmentação dos quadrinhos e mudanças drásticas de estilo gráfico.

X´ed Out - Charles Burns
Nesta primeira parte da mais recente novela gráfica de Burns, um rapaz vaga entre delírios, lembranças e raros momentos de lucidez. Alguns leitores reclamaram que Burns não deu muita atenção ao roteiro. Vale ao menos pela alta qualidade gráfica e as referências às clássicas HQs do Tintin.

Acusados de incitarem a violência, os quadrinhos de horror foram praticamente banidos das bancas norte-americanas na segunda metade dos anos 1950. Esta coletânea é uma ótima introdução ao gênero, com reproduções de histórias e capas originais.

The Littlest Pirate King - Pierre Mac Orlan, David B.
Acostumados a conviver com monstros marinhos, pilhar navios e assassinar marinheiros, um grupo de assustadores piratas mortos-vivos tem sua rotina radicalmente transformada quando se vêem obrigados a cuidar de uma criança. David B., autor da HQ autobiográfica Epilético, usa sua arte bela e sombria para adaptar um divertido texto de Orlan.

Exemplo primoroso de jornalismo em quadrinhos. Foi lançado no Brasil com o título Notas sobre Gaza, pela editora Companhia de Letras.